Chega a ser assustador ler alguns cardápios de restaurantes estrelados considerados templos da moderna gastronomia. E não falo isso pelos preços, porque se fosse analisar o binômio preço/peso, provavelmente o valor do grama desta gastronomia seria equivalente ao grama do ouro, e particularmente, não acho que tenha competência para avaliar o quanto vale o conceito desta comida e qual o seu real valor! Para mim, esses cardápios parecem uma combinação da apostila de química do terceirão, com um toque de física conceitual, compilado por Stephen Hawking e escrito por Nostradamus sob supervisão de Virginia Woolf… simples assim! A gastronomia molecular, que começou a ser desenhada no final da década de 1980, se apresenta assim pela formação de seus criadores: um físico, o húngaro Nicholas Kurti, e um químico, o francês Hervé This, que tive a felicidade de assisti-lo duas vezes defendendo essa cozinha como a “nova fisiologia do gosto”, uma alusão a bíblia da gastronomia, “A Fisiologia do Gosto”, escrita por Brillat Savarin. Não que desaprove totalmente essas modernidades gastronômicas, mas quando penso em gastronomia molecular, romântico que sou, não me vem à cabeça os elementos da tabela periódica que fazem parte de muitas receitas icônicas nas cozinhas de Ferran Adriá e Heston Blumenthal. Lembro sim do cozimento do “ovo perfeito”, uma não tão complexa combinação de temperatura e tempo, onde o controle da temperatura é tão importante quanto o controle do tempo. Isso sim uma grande revolução na cozinha.Mudaram a forma de cozinhar e pensar ‘cozinha’, pois há mais de mil anos assamos frango cozinhamos ovos da mesma maneira rudimentar e com o mesmo resultado. Mas essa ideia, a técnica da combinação tempo/temperatura, começou a ser desenvolvida antes ainda destes cientistas/cozinheiros pensarem molecularmente: foi no início dos anos 1970 quando chefs e especialistas franceses buscavam um novo método de produção e armazenamento de alimentos congelados. Nascia ali a técnica conhecida hoje como sous vide (do francê: sob vácuo). O sous vide muito provavelmente será o principal legado deixado na história da gastronomia pela Foam Culinary, a cozinha de espumas, tão cultuada por chefs moderninhos com suas dolmãs coloridas e pele decorada com muitas tatuagens. Esta técnica, que é um dos pilares da gastronomia molecular, garante a cocção uniforme e precisa, confinando sabores e aromas, preservando a umidade, dando maciez sem perder a textura e, principalmente, mantendo as todas propriedade nutricionais dos ingredientes quando cozidos. Carnes, peixes, legumes, hortaliças, enfim, toda sorte de produtos selados em sacos plásticos sem ar e cozido lentamente em água circulando constantemente e com temperatura milimetricamente controlada… uma jacuzzi culinária. Cada produto tem seu tempo e temperatura, tudo determinado por testes científicos, com experiências, erros e acertos, como é tudo na cozinha. Contaminação, oxidação e desperdício levados ao risco mínimo. Padronização, qualidade na cocção e conservação!Uma técnica quase perfeita para quem gosta de perfeição, mas que exige do cozinheiro tanto, ou mais, estudo do que a cozinha tradicional. Mas a procura desses tipos de técnicas não é nenhuma novidade. Historicamente o homem sempre procurou formas de conservar alimentos, e assim, tanto o sous vide quanto o confit nasceram desta procura. O confit, dizem alguns historiadores, surgiu no antigo Egito e chegou à Europa através da diáspora judaica ainda antes da era cristã. Mas foi no reinado de Henrique IV de Bourbon, que esse clássico chegou às nobres mesas de banquetes, receitas vindas da Gasconha, sudoeste da França, onde era tido como um prato camponês. Não seria errado afirmar que o confit é o pai do sous vide pois as duas técnicas têm semelhanças no seu conceito: o alimento é cozido sem contato com o ar, em baixa temperatura e por um longo tempo. Porém, no confit, ao invés de confinado em sacolas plásticas, o alimento é cozido submerso em gordura, animal ou vegetal, sem contato com o ar, mas trocando alguns sabores e líquidos com o meio aquoso da cocção. A grande diferença entre as duas é que o processo de confitar pode ser feito com facilidade em casa, não são necessitando de aparelhos específicos e nem de tabela mirabolantes, o que não é o caso do sous vide. Em ambas as técnicas, os detalhes, a atenção e a qualidade dos produtos é fundamental … e, como acontece no filme mexicano “Como água para Chocolate”, amor, alegria e carinho têm que ser os principais ingredientes de todas as receitas:
Confit de Canard
Limpe quatro “pernas” de pato e esfregue bem com sal grosso de boa qualidade, de preferência o francês de Guerande, pois os nacionais sempre têm iodo na sua composição, o que nem sempre é bom. Deixe descansar na geladeira por pelo menos 24 horas enrolado em um pano limpo. É sempre necessário desidratar levemente as carnes para melhorar sua cocção e conservação. Passado esse tempo, remova o sal e lave rapidamente, secando bem em seguida. Tempere com pimenta branca moída na hora.Coloque em uma travessa funda e cubra com gordura de pato (cerca de um quilo), e se não tiver esse tipo de gordura, pode ser usada a banha de porco. Coloque os temperos que acariciem o seu paladar, eu coloco alho em dentes inteiros, folhas de louro e zimbros macerados. Leve ao forno muito baixo, não deve ultrapassar 70 °C, e jamais, veja bem, jamais passar de 100°C … e se fritar então, desista, e compre uma pizza! Três horas serão suficientes para ter o confit no seu melhor ponto. Guarde na própria gordura e doure rapidamente a pele ao servir… perfeito com um salteado de maçãs e alguns legumes macios.